São muitos os posicionamentos que fazem do final da Segunda Guerra Mundial – e do Holocausto em particular – um momento de cisão com a restante história da Humanidade e um momento de profundas alterações na cosmovisão universal. Nesta conferência pretende-se estudar, identificar e perscrutar os sinais e as condições que propiciaram (e continuam a propiciar) regimes políticos assentes em práticas autoritárias e totalitaristas – e quais as formas, no presente e no passado, na arte e na vida, de lhes resistir. Propõe-se que a exploração deste inexpugnável poliedro seja feita través do binómio obediência/desobediência, encarado aqui como uma forma de pensar sobre a vivência da política nas sociedades contemporâneas e como ponto de partida para uma discussão sobre as derivas autoritárias que criam estados de excepção para minarem as democracias. A conferência pretende reunir estudantes, investigadores e profissionais das artes performativas, bem como de outras disciplinas interessadas nas ciências socias e humanas (filosofia, história, política, religião e cultura).
Hannah Arendt, em Auschwitz e Jerusalem (1946), designa como a origem da época moderna a imagem do Inferno Nazi, e declara como objectivo, tal como sublinha Catherine Naugrette em Paysages dévastés (2004), o dever de regressar a essa história para poder chegar a um novo conhecimento sobre o homem e fundar um destino novo. Zygmunt Bauman, em Modernity and the Holocaust (1989), refuta a ideia de que o Holocausto terá sido uma aberração histórica, um episódio irrepetível, encarando-o como uma janela para a modernidade. Pelo contrário, entende-o como um evento “único e normal”, uma cristalização da Modernidade e das práticas daqueles a que chama “Gardening States”. Esta metáfora floral serve para tratar de Estados que impõem um desenho na paisagem, tal como um jardineiro impõe o seu desenho na natureza. Assim, face ao sentimento de desregulação e descoordenação do mundo, um “Estado Jardineiro” impõe a organização e a ordenação, através de uma actividade racional e deliberada. O assustador está na constatação de que todos os Estados Modernos podem corresponder à classificação de “Gardening States”. Theodor Adorno afirmará (em Prismes, 1955), com eco notável, que “escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro”. Em “L’Heure du crime et le temps de l’œuvre d’art”, um ensaio onde Peter Sloterdijk define a época moderna como a época do monstruoso, como a época onde não há mais a possibilidade de possuir um álibi perante o monstruoso global, o filósofo lembra que o século XX “desempenha um papel preponderante na hora do crime da modernidade: aí, eliminámos pouco a pouco os álibis históricos e regionais para fazer de todos os contemporâneos as testemunhas e os cúmplices potenciais do monstruoso criado pelo homem” (apud Naugrette 2004: 12). Giorgio Agamben, em Remembrants of Auschwitz (2002), uma obra que evoca o testemunho de Primo Levi e que sublinha a importância que os prisioneiros nos campos de concentração nazi atribuíam à necessidade de sobreviver para se tornarem testemunhas do horror, refere-se a Auschwitz como “a experiência devastadora na qual o impossível é obrigado a tornar-se real. Auschwitz é a existência do impossível” (2002: 148).
Esta conferência, parte integrante do projecto “The Holocaust and Modernity: Violence and Obedience in Present Societies”, surge como espaço de pensamento, reflexão e prática, nela se procurando fazer um mapeamento das configurações relacionais que se podem desenhar quando se juntam palavras como poder, soberania, liberdade, resistência, multidão, servidão e afetos com o conceito e os diversos significados do binómio obediência/desobediência. Perguntamos então: Porque obedecemos? A quem obedecemos? O que é a obediência colectiva? O que sabemos sobre a forma como gerimos a liberdade e a subjectividade? Quais as causas da obediência política como experiência da servidão?