A edição que agora se produz pretende dar conta do encontro produtivo entre a crítica textual e as potencialidades informáticas na abordagem científica do texto de teatro. É uma edição que, tirando partido dessas potencialidades, permite aliar os fac-similes das edições quinhentistas à transcrição de cada um dos autos, apresentando ainda um estudo cuidado e exaustivo das obras.
Ao produzir no início do século XXI uma edição dos autos resultante de rigorosa pesquisa filológica e da revisitação sistemática da bibliografia vicentina, e ao oferecer à leitura a transcrição da obra segundo critérios que permitam restaurar condições de produção dos autos no seu momento histórico, pretende-se recuperar a memória das acções teatrais que os viram nascer.
Foi necessário analisar os textos e o seu paratexto, recriando uma rede de informações que os tornem legíveis hoje. A determinação inicial de campos de pesquisa foi suscitada pela análise dos textos, mas convém realçar o facto de a decisão de usar o suporte informático ter desencadeado opções de investigação relativas à obra que possibilitam uma pesquisa impensável no suporte tradicional em livro.
Edita-se a totalidade da Copilação de todalas obras, de 1562, os folhetos quinhentistas Barca do Inferno 1517, Maria Parda 1522, Inês Pereira 1523, História de Deos e Ressurreição de Cristo 1527, Festa – s.d., Processo de Vasco Abul (que contém um parecer de Gil Vicente)- publicado no Cancioneiro Geral em 1516 e, por considerarmos que as diferenças existentes são significativas e importam para o estudo da obra, Dom Duardos da Copilação de 1586. Edita-se também em imagem de grande definição e nitidez uma reprodução fotográfica da Custódia de Belém, conseguindo, assim, num mesmo suporte, reunir a totalidade da produção artística de Gil Vicente que chegou até aos nossos dias.
Privilegiamos nos textos a sua especificidade de objectos de teatro e a transcrição procura dar conta do que poderá ter sido a realidade fonética da língua na época do autor, utilizando, tanto quanto possível, a norma ortográfica vigente em 2001. Corrigem-se erros atribuíveis a editores e tipógrafos quinhentistas e notam-se, mas não se alteram, passagens cuja forma ou sentido não são claros ou imediatamente legíveis.
Cada auto é objecto de uma apresentação, por autores diversos, que o contextualizam, explicam circunstâncias e sugerem análises, quer da ordem do espectáculo, quer da ordem do literário.
A transcrição dos textos é acompanhada por cerca de 3300 notas que são de carácter lexical ou filológico (incluindo indicação de fontes citadas e glosadas) ou que apontam circunstâncias de produção e relacionam passagens diversas na obra.
Está criado um glossário de 6200 entradas que explica o significado das palavras no contexto em que surgem (em redondo) e / ou regista a grafia moderna da palavra referenciada (em itálico). Dúvidas persistentes vão assinaladas com ?.
Mostra-se um elenco de cerca de 22.500 palavras que, eliminadas as repetições, corresponde à totalidade das palavras da transcrição e permite relacionar termos afins, do ponto de vista lexical, quer por proximidade fonológica resultante de deturpação propositada, com fins artísticos como por exemplo abrenúncio / ableñuncio/ abarrúncio, que remetem para contextos do saiaguês e do rústico, quer por coexistência de formas variadas da mesma palavra em estados diferentes da sua evolução: hospital / esprital; sprito / espírito, etc.
Foram estabelecidos e marcados 29 campos para pesquisa temática que considerámos terem um peso relevante no conjunto da obra e nas recorrências do trabalho do autor, constituindo muitos deles subgéneros artísticos desenvolvidos por vários autores contemporâneos de Gil Vicente:
Alimentação; Arrenegos; Astrologia / Astronomia; Cantigas; Cigano; Citação; Devoção mariana; Doutrina; Feitiços; Filosofia da morte; Judeu; Juramentos; Medicina; Mitologia; Morte de Amores; Mouro; Mundo rural e campestre; Náutica; Negro; Ofícios e categorias / grupos sociais; Onomástica; Paixão e Morte de Cristo; Personagens; Pesares; Pragas; Profecias; Provérbios; Toponímia; Vestuário.
Apresenta-se ainda uma Bibliografia exaustiva que permite uma consulta rápida de espécimes recenseados por diversos campos: títulos – catálogo (edições das obras de Gil Vicente, por auto) e crítica (estudos sobre a obra do autor); autores críticos (de ensaios, artigos, edições críticas, etc.). Cada ficha bibliográfica contém um comentário que esclarece sobre o número de edições do texto em causa, sobre o local onde determinada edição antiga está depositada, etc.
O CD-Rom conta ainda com uma colecção de imagens directa ou indirectamente relacionadas com as obras, o autor ou a época e um conjunto de composições musicais interpretadas por músicos que se dedicam à investigação da música antiga e recuperaram ou reconstruíram partituras de música que Gil Vicente terá utilizado nos seus autos, recolhidas em cancioneiros ibéricos dos finais do século XV e princípios do XVI.
O suporte CD-Rom permite ao utilizador não só a leitura dos textos, como também a confrontação automática com os fac-similes e, no caso dos autos em que se apresenta mais do que uma edição quinhentista, entre as diferentes lições. Permite-lhe ainda, para além da busca automática simples (por palavra ou expressão), a consulta dos diversos índices atrás enunciados (campos temáticos) e a sua imediata contextualização.
José Camões, Janeiro de 2002