Maria João Almeida
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
O nosso interesse pelo estudo de Goldoni e da sua obra em Portugal tem a sua origem mais remota na actividade docente que, sob a orientação do Prof. Costa Miranda, vínhamos desenvolvendo na disciplina de Literatura italiana. Com frequência os assuntos de trabalho recaíam em Goldoni, por dois motivos associados. Por um lado, encontravam-se em fase de publicação em Itália, em meados da década de 1990, vários estudos na sequência das comemorações do Bicentenário da morte do veneziano. Por outro lado, Costa Miranda notava andarem por ali perspectivas novas e visões actualizadas de textos e contextos que vinham complementar o muito que já se fizera em décadas anteriores.
Com sua atenção de muitos anos prestada a Goldoni, quer em Itália, quer em Portugal, delineando-lhe em vários trabalhos o perfil e a fortuna de comediógrafo nos palcos e prelos do nosso país de Setecentos, Costa Miranda admitia ser oportuno o tempo de se revisitar o autor. Não apenas por estas razões nos sugeria o estudo de Goldoni como, sobretudo, se dizia crente de que esse estudo poderia constituir um campo de investigação muito promissora, ao mesmo tempo que necessária ao melhor conhecimento de Goldoni em Portugal, sobretudo se viesse a ter a amplitude de uma Tese de Doutoramento.
Não havendo lugar para dúvidas acerca da oportunidade epocal e do interesse científico da sugestão, ficava aberto o desafio sobre qual a melhor orientação para definir um objecto goldoniano de indagação adequado a uma tese. Como aliás previa o nosso mestre de italianística, as ideias começavam a ordenar-se ao darmo-nos conta da extraordinária difusão europeia da produção comediográfica e libretística daquele autor no decurso da segunda metade do século XVIII.
Ao mesmo tempo que nos cativava esta notável fortuna surpreendia-nos a mole imensa de traduções, que em números redondos se contam na ordem das três centenas, feitas em mais de uma dezena de línguas por toda a Europa até ao final de Setecentos. Mas, acima de tudo, atraía-nos o facto, atestado por Costa Miranda, de uma larga fatia desse total de traduções se dever às versões nacionais, até então divulgadas, primeiro, por Giuseppe Carlo Rossi e, na sequência deste, pelo próprio Costa Miranda.
Mas eram também palpáveis os motivos para se supor que tais traduções portuguesas constituíam apenas a parte mais visível, porque subsistente em suporte papel, de um fenómeno de proporções ignoradas e que, por hipótese, teria ganho os seus fundamentais contornos em palco. Ficava-nos, assim, como que exposto, por força deste desenvolvimento dos factos empíricos, um território repleto de silêncios e de lacunas, motivo para interrogações e conjecturas.
As mais importantes questões que se nos começaram a colocar na elaboração de um plano de trabalho incidiram, por isso, admitindo uma ordem lógica plausível, provisória, sobre os seguintes aspectos gerais: 1) que mecanismos teriam orientado a difusão de Goldoni em Portugal; 2) quais seriam as suas vias de penetração, admitindo que constituíssem um aspecto particular de um processo de italianização; 3) porque motivo se implantara de modo tão expressivo nos palcos portugueses, quer a sua comediografia, quer os seus dramas jocosos para música; 4) que moldura de época lhe servira de quadro contextual, político e cultural; e, questões que pensamos serem essenciais, tais como: 5) com que motivações e fundamentos o sistema teatral português de Setecentos se apropriara de Goldoni e o integrara no seu repertório; 6) a que saber hipoteticamente novo nos poderá levar a tentativa de reconstituição das condições de produção teatral em Portugal, na corte e teatros públicos.
O caminho que delimitámos, mediante tentativas de entendimento do processo goldoniano, constitui um modo de procedimento heurístico que tomámos como plano-guia de trabalho, tendo em vista, em primeiro lugar, a fase de investigação e, em segundo lugar, em caso auspicioso, o modelo formal e prático de Tese.
As nossas constatações começaram, por isso, pelo princípio, pelo lugar onde tudo teve início, pelo delineamento evolutivo do teatro em Veneza que fundamenta, à distância, o processo que se projectou sobre Portugal. A carreira teatral de Goldoni em Veneza e outros lugares, refracta-se na sua vasta produção, no que sabemos terem sido os seus esforços de reforma do teatro cómico e nas suas propostas dramatúrgicas inovadoras, bem como nas edições de textos, tudo convergindo no sentido da projecção internacional da sua obra.
Torna-se assim necessário apresentar a configuração do sistema teatral encontrado pelo autor e as condições de operatividade à sua disposição. Consideramos vantajoso que o seu perfil deva ter por complemento a obra no âmbito da biografia de escritor teatral de profissão, no contexto espectacular em que operou, de projecção nacional e internacional. Isto porque admitimos que a sua produção teatral se deveu em parte ao modo como geriu a carreira, o perfil de autor e o papel de editor do seu teatro dramático.
Em termos mais gerais, importa-nos por isso reconhecer, quer as diferentes edições de comédias e tragicomédias promovidas pelo autor, quer as publicações não autorizadas ou “clandestinas”, esclarecendo as eventuais relações de dependência entre elas e as possíveis repercussões sobre a difusão impressa do seu teatro cómico em Itália e no estrangeiro. E, ainda, conhecer a tradição impressa dos dramas jocosos para música, tendo em especial atenção os particulares modos de constituição e difusão dos libretos no século XVIII.
No seguimento lógico do projecto, consideramos de primeira importância indagar como e quando se deu a entrada e instalação de Goldoni em Portugal em dois espaços bem reconhecidos, o da corte e o dos teatros públicos, no que respeita à ópera até ao início da actividade do S. Carlos. Tomamos o teatro lírico como início de italianização propiciadora da vinda de Goldoni e D. João V como referência de tempo histórico favorável à corrente italiana. Em relação ao estabelecimento teatral régio, ao longo dos reinados de D. José e D. Maria, delineamos os possíveis meandros da ópera e do género dramático na corte, visando elucidar as suas condições de produção enquanto espectáculo, os lugares teatrais, o aparelho organizativo, os recursos de técnica, humanos e artísticos, a constituição e o registo evolutivo dos respectivos repertórios.
Neste percurso que progressivamente se centra em Goldoni, tencionamos abordar em seguida as circunstâncias da penetração e presença das comédias e dos dramas jocosos para música nos teatros públicos, ainda na perspectiva das condições acabadas de enunciar a respeito da corte e no pressuposto, indicado já, do processo de italianização da cena portuguesa.
Partindo da realidade factual da implantação efectiva de Goldoni em Portugal, é também possível problematizar o processo das encomendas feitas (a partir de 1763) pela Coroa a Goldoni libretista, que parecem atestar a afirmação plena do seu renome no seio da corte portuguesa. Admitimos que, de posse de todas estas informações e de outras, nomeadamente as atinentes à passagem de obras pela Censura, estamos em condições de avaliar os contornos e a amplitude da existência de Goldoni em Portugal e proceder ao levantamento do seu teatro aqui representado e impresso.
Com base nas informações que coligimos a respeito das configurações do autor, da sua obra e das edições que a difundiram, bem como da sua implantação no sistema teatral nacional (o da corte e o público) num específico quadro político-ideológico e cultural, procuramos finalmente averiguar e esclarecer o mais completamente possível aspectos essenciais, por se tratar de casos singulares, aptos sob diversos aspectos e circunstâncias a iluminarem o historial de inscrições e projecções da obra goldoniana no contexto português. É possível sintetizá-los em 1) critérios e princípios orientadores da Censura; 2) radiografia do mercado editorial; 3) condições e recursos de representação.
Pelo facto de este programa de investigação que incide sobre Goldoni em Portugal implicar logicamente o levantamento tão exaustivo quanto possível da sua obra no espaço nacional, tencionamos valorizar a informação coligida incluindo-a na Bibliografia sob uma alínea específica.
ÍNDICE
Introdução
Parte I
Cap. I: Veneza, o Teatro e os Teatros
1. Teatros públicos e capitais privados
2. Expansão da actividade teatral e “indústria” do espectáculo
3. Capital europeia do espectáculo
4. Sistema teatral à medida de Goldoni
Cap. II: Um homem de Teatro «né cavaliere, né letterato»
1. Em Itália
2. Em França
Cap. III: Tradição impressa das comédias e tragicomédias
1. Preliminares sobre as edições setecentistas
1.1. Relação dialéctica entre o palco e o prelo
1.2. Reelaboração textual e percursos editoriais
2. Da Bettinelli à Zatta (autografia e apocrifia)
2.1. Edição Bettinelli
2.2. Edição Paperini
2.3. Edição Pitteri
2.4. Edição Pasquali
2.5. Edição Zatta
3. Edições “clandestinas”
Cap. IV: Tradição impressa dos dramas jocosos
1. Constituição e modos de difusão do libreto
2. Tradição da execução ou da representação
3. Edições dos dramas jocosos para música de Goldoni
Parte II
Cap. I: Teatro na corte portuguesa
1. Teatro lírico
1.1. Breves Antecedentes
1.2. D. José e a Instituição Operática
1.3. Tempos de mudança
1. 4. Goldoni e a Coroa portuguesa
1.5. Um robusto estabelecimento operático
2. Teatro dramático
2.1. Companhia do Truffaldino Sacchi
2.2. Antonio Sacchi e Goldoni
2.3. Fazer de cómico
Cap. II: Teatro nos teatros públicos
1. Teatro lírico
1.1. Em Lisboa
1.1.2. Primórdios da ópera comercial
1.1.3. Antes da “Sociedade”
1.1.4. A “Sociedade”
1.1.5. Depois da “Sociedade”
1.2. No Porto
2. Teatro dramático
2.1. O capocomico e o comediógrafo
2.2. Casa da Ópera palco de comédias “reformadas”
2.3. Commedia dell’Arte na Rua dos Condes: o último sopro de Arlecchino
2.4. Repertório goldoniano
Parte III
Goldoni em Portugal no séc. XVIII
1.Anotações Gerais
2. Comédias e tragicomédias
3. Dramas jocosos para música
4. Produção teatral em Portugal
4.1. Quadro/Cronologia
4.2. Quadro/Comédias e tragicomédias
4.3. Quadro/Dramas jocosos para música
Leitura dos Quadros
Parte IV
Casos singulares
1. Com beneplácito régio
2. Fenómenos de mercado editorial
3. Um «originale rubato e scorretto»: a edição “pirata”
4. Comédia “espúria” – tradutor “non traditore”
5. Uma estreia absoluta
6. A Famiglia dell’ antiquario no teatro público e na corte
7. Árias novas e outras mutações: o triunfo efémero da servetta
Conclusão
Bibliografia